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Chile e Pinochet

29 de novembro de 2011

"Atado e bem amarrado", assim Pinochet quis deixar o Chile. E o deixou tão atado que o país ainda não se livrou da camisa de força político-social imposta pela ditadura. Não só os estudantes se rebelam agora.

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Pinochet faleceu em 2006 sem haver sido condenado pelos crimes cometidos durante a ditadura (1973-1990)
Pinochet morreu em 2006 sem ter sido condenado pelos crimes cometidos durante a ditaduraFoto: AP

Acostumado com o êxito econômico e com as boas classificações internacionais refletidas nos baixos índices de corrupção e de risco de investimentos, o Chile teve agora que enfrentar a crítica dos protestos estudantis, apoiados por outros setores da sociedade. Uma crítica que também reflete a outra cara do país, que se rebela contra a desigualdade e contra a falta de participação dos cidadãos e, finalmente, contra um modelo socioeconômico herdado da ditadura de Augusto Pinochet.

As garras do sistema

"Através do referendo de 1988, de algumas reformas constitucionais e principalmente através da instalação de governos democráticos desde 1990, o Chile pôs fim à ditadura. Mas ele herdou um sistema institucional não democrático, que assegura a manutenção da ordem social gerada pela ditadura", apontou o sociólogo e cientista político Manuel Antonio Garretón, da Universidade do Chile.

Desde a volta da democracia, as eleições continuam seguindo as regras impostas pela ditadura
Desde a volta da democracia, as eleições continuam seguindo as regras impostas pela ditaduraFoto: AP

"O sistema político impede a maioria de exercer seu papel como tal, porque o sistema eleitoral garante que a minoria tenha um poder de veto", disse, referindo-se ao sistema eleitoral, que na prática leva a um virtual empate de forças no Parlamento chileno.

Trata-se de um elemento-chave do sistema que o regime militar lançou mão para tentar deixar tudo "atado e bem amarrado", porque a Constituição de 1980 exige quóruns altos para reformar várias leis, e esses são extremamente difíceis de alcançar.

Assim, apesar das reformas, como a de 2005, que terminou com os senadores designados, a camisa de força constitucional continua mantendo o país no caminho traçado por Pinochet. "O sistema político torna-se um fiador do modelo socioeconômico", disse Garretón, sublinhando que "não há um sistema institucional no mundo que se pareça com o do Chile, no sentido de ser algo totalmente herdado e planejado pela ditadura e que garante que os herdeiros dela imponham sua vontade e impeçam que reformas sejam feitas".

Crimes cometidos pela ditadura não foram esquecidos
Crimes cometidos pela ditadura não foram esquecidosFoto: AP

Grande inquietude

Com essa "amarra" se depara quem tenta promover mudanças fundamentais no modelo chileno – que atribui um papel de liderança ao mercado e que, embora tenha trazido um crescimento econômico considerável, também criou uma sociedade com graves problemas de equidade. Segundo a Pesquisa de Caracterização Socioeconômica Nacional, de 2009, os 10% da população chilena com rendimento mais alto captam 40% da receita total gerada no país. Os 10% mais pobres, no entanto, recebem apenas cerca de 1% dessa riqueza.

Além de restrições institucionais, o fato de a transição chilena ter sido organizada e não ter implicado uma ruptura com a ditadura deixou sua marca nesse processo, de acordo com o historiador alemão Stephen Ruderer, autor do livro O legado de Pinochet.

O pesquisador da Universidade de Münster observa que "segue havendo sobretudo uma política consensual dentro da elite, da Concertación e dos partidos de direita, que faz com que não se possa avançar muito na democratização de verdade no Chile". Garretón, no entanto, argumenta que "a direita que hoje em dia governa o país é herdeira de Pinochet, por isso vai sempre impor um veto para que não possam ser feitas as reformas que alterem a ordem social herdada da ditadura."

Desencanto político

Ainda assim, os recentes protestos liderados por estudantes – que não apenas exigiam uma educação gratuita e de qualidade, mas também a participação dos cidadãos e mudanças substanciais no modelo chileno – estão fazendo forte pressão. "Mas faltam os agentes políticos", observou Ruderer, que se mostra bastante pessimista sobre a possibilidade de uma transformação substancial. "Nem o governo nem a atual oposição gozam de credibilidade junto a setores da sociedade civil. Quem poderia então canalizar essas demandas em leis ou decisões políticas?"

Estudantes protestam contra sistema educacional herdado da ditadura
Estudantes protestam contra sistema educacionalFoto: FECH

Essa apreciação é confirmada através dos últimos dados fornecidos por uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos da Realidade Contemporânea (Cerc), que registram uma queda acentuada na popularidade do presidente Sebastián Piñera, para 22%, sem que a oposição tenha conseguido lucrar com isso: só 11% dos entrevistados disseram apoiar os partidos da Concertación, que governou o país entre 1990 e 2010.

Direitos humanos

Assim, o Chile está diante de um dilema complexo, que põe em xeque as estruturas que Pinochet quis eternizar, mas das quais não consegue se livrar. "O país ainda não saldou suas contas com o passado", apontou Garretón. E isso também pode ser aplicado ao doloroso tema dos direitos humanos.

Em duas décadas de democracia, foram feitos grandes progressos quanto à revelação da verdade sobre os crimes da ditadura e à indenização das vítimas. Mas há capítulos pendentes sobre processos judiciais e punições dos culpados. E também há uma grande carência em relação ao "discurso público", disse Stephen Ruderer, aludindo à falta de unanimidade na sociedade chilena em condenar a ditadura: "No Chile, ainda há quem diga que Pinochet não foi tão ruim, que ele reformou o país".

Autora: Emilia Rojas (ca)
Revisão: Roselaine Wandscheer